17.7.09

Texto que escrevi para os formandos em Biblioteconomia de 2009.1
Em primeira mão...

Uma breve história da história.

O que é o homem? E para quê é o homem?
Como disse Guimarães Rosa - três dias antes de sua morte - "a gente morre para provar que viveu. As pessoas não morrem; ficam encantadas".
Desde que existe este homem, efêmero, existe a busca do transcendente, do numinoso, do eterno. Essa vontade de "existir", para além da sua existência. De atirar flechas e comungar com o futuro, mover-se no tempo como se move no espaço.

Há muitas formas de perpetuar-se... dentre elas, gerar vida, criar arte e registrar a história. Vida, arte e história, porém, se confundem, se manipulam, se modificam na medida em que são memória, são registro... o inexorável caminho do homem é hoje demasiado longo, e há muito não se deposita na oralidade a prerrogativa da manutenção das cosmogonias. O escrito é lei! Não existem fatos, mas milhões, miríades, de versões... e os registros têm como destino, como fantasiou Chico Buarque, serem descobertos, revirados, em qualquer futuro, pelos escafandristas. Ou, na imagética atual, pelos arqueólogos da virtualidade... sempre sob a égide do "desejo, necessidade e vontade " dos usuários.

Acontecida ou não, a história está escrita, mesmo que de tantos e tão diversos ângulos e pontos de vista. E o escrito - registrado, sacramentado - é, se não lei, o único subsídio para a hermenêutica. Da interpretação renasce o passado, o que de fato existiu e o que nunca houve, indistintos. Talvez Guimarães Rosa quisesse dizer-nos... a gente escreve para provar que viveu!

Nas alegorias de Bruno Latour ou de Jorge Luís Borges, as bibliotecas são "centros de cálculo" em que se encontram os epicentros do mundo, ou mesmo os "mundos" autoreferentes e autosuficientes. Guardam nos seus ventres a matéria prima de suas profecias. Através da história, nasceram como bibliotecas-cavernas com afrescos naives em paredes... colecionaram registros em papiros e iluminuras em pergaminhos, com seus palimpsestos e projetos de hipertextos. Abrigaram os codex, delicadamente manuscritos, até que vieram os papéis. Estes proliferaram-se em livros, sofrendo a pressão sôfrega dos tipos em prensas, das máquinas de escrever e das impressoras. E neste novo milênio, o arauto Kindle anuncia o divórcio entre informação e suportes, num duro golpe ao saudosismo das gerações da celulose. Em nossos santuários do saber, vão-se os anéis, ficam-se os dedos... mudam-se os substratos, ficam-se os registros, estas tecnologias da transcendência.

E a quem concedemos as prerrogativas deste patrimônio? Não serão estes bibliotecários os verdadeiros Deuses (e não astronautas)? Pois estes senhores e senhoras, desde os garbosos e paramentados em seus guarda-pós até os entusiastas cibernéticos das redes e virtualidades, são os guardiões da aventura intelectual humana. São os Pontífices - construtores de pontes - que costuram o que se sabe sobre o que já houve com o necessário ao que ainda vai haver. No que nos trazem, ou deixam de trazer... no que preservam, ou deixam morrer ... dão forma ao conhecimento, recriam a vida, constroem a história.

Que nos ajudem, sábios e imparciais, a conhecer o que precisamos conhecer, e que esqueçamos o que é imperativo esquecer.
Que sejam os iluminados curadores, dos tempos exponenciais. Que preservem o "sempre", e previnam o "jamais".
Atreva-te!

Texto delicioso da Clarice Lispector, deliciosamente narrado pela minha esposa:

UMA HISTÓRIA DE TANTO AMOR
CLARICE LISPECTOR
CONTOS E LENDAS


Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem angústia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém, e ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder a primeira das mais longínquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a sua arte. Voltando às galinhas, a menina possuía duas só dela. Uma se chamava Pedrina e a outra Petronilha.

Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava embaixo das asas delas, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva não é de se brincar. Então pedia um remédio a uma tia. E a tia: "Você não tem coisa nenhuma no fígado". Então, com a intimidade que tinha com essa tia eleita, explicou-lhe para quem era o remédio. A menina achou de bom alvitre dá-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar contágios misteriosos. Era quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o dia ciscando o chão e comendo porcarias que faziam mal ao fígado. E o cheiro debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe ocorreu dar um desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados assim como não se usavam roupas íntimas de nylon e sim de cambraia. A tia continuava a lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava ser água com uns pingos de café - e vinha o inferno de tentar abrir o bico das galinhas para administrar-lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm misérias e grandeza (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita) inerentes à própria espécie. A menina morava no campo e não havia farmácia perto para ela consultar.

Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e Petronilha magras debaixo das penas arrepiadas, apesar de comerem o dia inteiro. A menina não entendera que engordá-las seria apressar-lhes um destino na mesa. E recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrir-lhes o bico. A menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso quintal das Minas Gerais. E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na gíria o termo galinha tinha outra acepção. Sem notar a seriedade cômica que a coisa toda tomava:

- Mas é o galo, que é um nervoso, é quem quer! Elas não fazem nada demais! e é tão rápido que mal se vê! O galo é quem fica procurando amar uma e não consegue!

Um dia a família resolveu levar a menina para passar o dia na casa de um parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não existia aquela que em vida fora Petronilha. Sua tia informou:

- Nós comemos Petronilha.

A menina era uma criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a amá-la sem esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos sua mãe que não gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de boi. O seu pai, então, ela mal conseguiu olhar: era ele quem mais gostava de comer galinha. Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe:

- Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro de nós. É uma pena.

Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida mesmo, pois sempre fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo num quintal ardente de sol, embrulhou-a num pano escuro e depois de bem embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes fogões de tijolos das fazendas das minas-gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a morte de Pedrina, mas a menina era obstinada e pôs mesmo Pedrina toda enrolada em cima dos tijolos quentes. Quando na manhã do dia seguinte Pedrina amanheceu dura de tão morta, a menina só então, entre lágrimas intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido.

Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina.

O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não romântico; era o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de Eponina ser comida, a menina não apenas soube como achou que era o destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma pré-ciência do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo.

Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinham feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens.