3.11.09

Transcrição de minha palestra na Mesa Redonda - Fé e Razão. UFMG, 11/04/2006.

"Eu gostaria de, inicialmente, agradecer ao Miguel, Fábio e Amanda pelo convite, para falar a vocês em tão ilustre companhia. Eu já dei palestras sobre muitos assuntos, mas é a primeira vez em que sou convidado para falar sobre Razão e Fé. Exatamente por ser novidade para mim, percebi que nunca havia refletido a respeito dessa aparente contradição, quase um oximoro. Eu peço desculpas pelo tom excessivamente pessoal, uma vez que estarei falando a vocês a partir da minha experiência.

O fato é que nunca, em minha vida, Razão e Fé se contrapuseram. A bem da verdade, nem possuo conhecimento – que não seja intelectual - do que seja “Fé”, ao menos na acepção mais comum da palavra. Parece-me que eu sempre “soube”, sempre percebi, desde a mais tenra idade, a presença do numinoso. Crer, ou ter fé, para mim, é uma atitude sobre algo de que não sabemos, de que não temos certeza. Como se diz de São Tomé, que precisou “ver para crer”. E essa percepção, tão atávica, do transcendente, imprimiu em minha alma uma busca pela verdade, pelo conhecimento racional – daquilo que sempre foi intimamente sentido. Se pudéssemos tentar encontrar uma outra pretensa dicotomia que melhor descrevesse minha experiência, esta seria entre a busca do entendimento racional sobre tudo aquilo que de outro modo, eu já sentia. Entre a razão e a sensação. Razão e sentimento.

Durante a infância estas questões estiveram parcialmente adormecidas, mas após a adolescência, rejeitei instintivamente o dogmatismo da educação católica que recebi. Ora pois, a doutrina se intercedia entre meu sentido de sagrado e a minha razão, de forma totalmente artificial. Toda a moral cristã já existia internamente no meu âmago, como ética humana. Por outro lado, os defeitos e a auto-indulgência daqueles que se colocavam como apóstatas de um Deus – que ganhou nome e história – me soavam contraditórios. Parecia a mim, naquela época, que o caminho do cristão era a busca de uma suposta “salvação” de um intangível pecado original, enquanto eu queria ser salvo da ignorância (da falta de conhecimento a respeito) de Deus; essa sim, a fonte de todo o mal. Os “pecados” de que falavam, eram banais, existiam em profusão, cotidianamente, e nada originais. E o que mais me incomodava eram a passividade e comodidade no aceite da condição humana com todas as vicissitudes, porque havia um Deus ao final para “redimir”, para perdoar. O caminho dos cristãos era, para mim, radicalmente diferente da real experiência de Cristo.

Na universidade, flertei com um novo Deus. O Deus da ciência, que era elegante e abstrato, e completamente indiferente às questões humanas. Entre nós, engenheiros, era mesmo considerada primitiva a idéia da religiosidade. A ciência explicava tão bem todas as coisas e ainda operava em um sistema auto-referente que lhe foi concebido de forma a invalidar todos os outros. Mas aquele meu Deus-sentido ainda assim, dava a tudo, sentido... fosse na beleza transcendente da matemática, ou nas entranhas da física quântica... ele estava lá. Quanto mais percebia o universo sob a ótica da racionalidade, mais evidente era para mim que o universo é fruto de uma inteligência superior. E ao sair da universidade, estava mais uma vez em crise, pois embora tivéssemos exemplos de cientistas profundamente religiosos e ainda assim respeitados, como Einstein, ainda assim se buscava expurgar esta “variável” divina e creditá-la a alguma propriedade ainda não conhecida da matéria e energia. O fato é que quanto mais chafurdamos nos domínios subatômicos, mais se percebe a consciência divina que permeia toda a matéria. Eu mesmo acredito que algum dia a ciência ainda vai nos aproximar do conhecimento de Deus. Na faculdade, participei de uma pastoral universitária e o trabalho para o bem do próximo era algo que me reconciliava com a religião católica. Mas a minha verdade ainda estava por ser encontrada.

Formei-me em crise e esta crise me colocou de novo no caminho da busca... cada vez mais fervilhante, cada vez mais necessária. Nessa busca visitei terreiros de umbanda, centros espíritas, mosteiros budistas; participei de workshops com vivências transpessoais, e em todos estes lugares eu encontrava – principalmente – o homem, perigosamente inflado pelos arquétipos de divindade. Mudavam os sistemas, as cosmogonias, as entidades, mas no fundo eu percebia que o belo desconforto que nos leva a buscar a luz, por vezes se dissolve nos grupos humanos, e troca-se o desejo da verdade pela ilusão do pertencimento. Infelizmente, este conforto não me servia. Então li tanto quanto se podia, a respeito de todos os caminhos que se me apresentavam... Estudei a astrologia, o tarô, e descobri em todos estes sistemas um canal para a expressão do self. Li e me emocionei com as vidas dos santos, que em seus modos particulares e verdadeiros, buscavam realmente a imitatio Christi – a imitação de Cristo. Admirei profundamente o caminho da individuação proposto por Carl Jung, e seu livro “Resposta a Jó” me tocou sobremaneira. A narração do embate entre Jó e Javé me marcou, principalmente quando Jung interpreta ter sido este o momento em que Javé resolve encarnar-se como Cristo, para conhecer aquele humano que havia criado. Pela primeira vez alguém afirmava, contrapondo-se a Maslow, que para além da auto-realização, havia um gatilho intrínseco ao ser humano, que é a busca da transcendência. Simpatizei com a idéia do Super-Homem de Nietzsche. Com o mitólogo Joseph Campbell eu conheci as tecnologias do sagrado, que as variadas culturas empregam para entrar em contato com o transcendente. Então eu conheci o Yôga.

No Yôga eu encontrei realmente um caminho que me servia. A essência do Yôga – que significa “união” – é despertar a porção divina dentro de cada um de nós, e unir esta com a fonte, com Deus. Pela primeira vez, a divindade era algo que podia ser experimentado, de forma tão completa, tão arrebatadora, que dissolvia quaisquer dicotomias – razão, sentimento – que porventura existissem. Passei quase dois meses na Índia meditando sob supervisão de um Swami, e entrei em contato com o que conheço de mais real, a experiência estruturante que me conduz. Como na luta de Cristo com os demônios no deserto, como na meditação transcendente de Buda, ou como na preparação do profeta Maomé no exílio... acredito que o sentido, o significado, que dissolve a razão e faz da fé desnecessária, só é encontrado pelo homem no seu íntimo, pois só no seu íntimo pode o homem encontrar a Deus. Desta experiência, me surgiu renovada a certeza da multiplicidade dos caminhos, e também um profundo respeito pelas buscas sinceras de todos os seres humanos – dentro ou fora dos sistemas religiosos. Tenho e busco sempre a consciência das minhas grandes limitações, que só são mitigadas pela certeza de caminhar sempre.

Para fechar, e compartilhar convosco o sentido desta vivência pessoal, digo que acredito que dentro de cada um de nós haja este desejo latente, adormecido. Somos como os girassóis, e, embora possamos ser criados em estufas, nossa maior realização é voltar-se para a luz. A juventude nos empresta diversas bandeiras, a vida nos encarrega de afazeres, e a roda viva por vezes amortece o espírito por muito tempo. Mas eu nunca conheci uma atitude refratária para com o numinoso que se sustentasse para sempre. A ignorância pode ser às vezes uma bênção, mas só a verdade traz a libertação."

Obrigado.