9.11.09

Relato sobre a viagem à Índia
28 Jan 2002

Meus caros amigos,
Escrevo na tentativa de oferecer uma descrição mais homogênea do que vivi nestes quarenta dias, pois são tantas as perguntas e tantos os amigos a perguntar... Cada hora me lembro de um aspecto, e acabo ressaltando uma faceta para cada pessoa. Nem sei se tenho muito a dizer, pois as maiores experiências em um retiro são subjetivas e internas, mas posso dizer algo da minha impressão sobre a cultura do país, nesta passagem, o que tento nos parágrafos a seguir.

Compreendo agora melhor a imagética que é despertada nas pessoas quando se fala em ir à Índia, pois talvez seja um daqueles poucos países do mundo em que um brasileiro possa sofrer choques culturais. Não posso dizer que conheci muito da Índia. Tive apenas em Mumbai (Bombaim), em Delhi; nas cidades sagradas de Haridwar e Rishikesh (onde passei a maior parte do tempo), em Derah Dum (capital da província do norte, Uttaranchal) e fizemos alguns passeios em pequenas vilas no início da cordilheira do Himalaia (Chamba e Mussorie), de onde vi os picos nevados, dentre os quais o Nandadevi, de mais de 7000 m.

Delhi e Mumbai são cidades grandes como muitas que conhecemos, com seus contrastes de opulência e favelas. Assim como não existe um Brasil, mas vários, o mesmo acontece com a Índia. Talvez de uma forma exacerbada, pois as diferenças culturais se somam às mais de dez linguagens e dialetos, de acordo com a região. A noção de "Índia" como um país toma força apenas após a colonização, pois antes existiam tribos com origens raciais e culturais extremamente diferentes. O sistema de castas, ainda que tenha sido combatido por Gandhi e contestado por vários que o percebem incongruente em um país que se auto-intitula "democrático", continua vigente. As profissões mais nobres são adotadas pelas castas mais nobres, e mesmo entre as castas inferiores existem trabalhos e tipos de serviço que são associados a algumas delas determinadas.

Quando saímos dos grandes centros, podemos ver por que a Índia é um país majoritariamente agrário, pois são vastas as plantações na beira das estradas nacionais. A Índia tem estoques de alimentos para os próximos dez anos, e exporta para os países vizinhos, além de alimentar sua população de quase um bilhão de habitantes (a segunda maior do mundo, atrás apenas da China, que tem quase o dobro). A comida e os itens de vestuário são extremamente baratos. Uma refeição em restaurante custa o equivalente a dois reais, e um pão de forma custa 30 centavos.

Nas ruas, podemos ver carros de modelos antigos que lembram o Brasil há cerca de vinte ou trinta anos, coexistindo nas grandes cidades com novos modelos japoneses e coreanos. Vemos muitos Riquixás, que são triciclos com uma cabine, que servem de táxis. São onipresentes, e o barulho de seus motores é um irritante ruído de fundo. O trânsito é caótico e barulhento, o que contrasta com a mão inglesa que nos lembra de seus colonizadores, tão organizados... a propósito, a palavra "organização" não existe no dicionário de Indi, um dos principais dialetos. As pessoas buzinam todo o tempo, e desviam na última hora do carro que vem, quando estão ultrapassando. O ruído do trânsito das menores estradas da Índia faz o centro do Rio parecer um mosteiro, de tão silencioso. Nas ruas ainda podemos ver as vacas sagradas, que vagam sem rumo e sem dono, e os motoristas que tem que se preocupar em desviar. Matar uma vaca, se proposital, pode levar à prisão perpétua, e se for um acidente, leva o responsável a julgamento como se fosse a vaca um ser humano (lembro-me do ministro Magri com suas cadelas).

Os animais são um show à parte. Além das ubíquas vacas, vimos nas cidades sagradas porcos, macacos, cachorros, búfalos; e numa reserva na margem oposta do Ganges de onde ficávamos, vimos elefantes, pavões, bisões (e há relatos de tigres e gazelas). Os macacos são bravos, e por vezes roubam carteiras e máquinas fotográficas de turistas. Nas cidades sagradas, há centenas de ashrans (comunidades) e milhares de saddhus, swamis, eremitas, monges, ascetas, e outros que fizeram opção pela pobreza e pela espiritualidade, nem sempre porque quiseram, mas porque ser pedinte seja um modo de vida aceito e institucionalizado na Índia. Talvez seja mais fácil exercitar o desapego e a espiritualidade quando o que se tem para se apegar seja tão escasso e desinteressante. Alguns deles moram em cavernas, em florestas, e muitos deles nunca tiveram um lar na vida. Há uma linhagem de monges que andam completamente nus. Os ashrans podem ser todo tipo de comunidade, mas os associamos às comunidades espirituais onde se pratica algum ramo da Yôga. As várias Yôgas estão intimamente ligadas ao hinduísmo, que é uma bela religião. Apresenta uma filosofia prática, além de uma cosmogonia nada dogmática, como podemos ver nas religiões que a sucederam. Mesmo o budismo tomou emprestado diversos elementos e técnicas originalmente associadas ao hinduísmo, com a meditação transcendental.

Na verdade, as diferenças entre o budismo e o hinduísmo são mais artificiais do que se poderia supor, e não vieram de Buda, mas dos budistas. Mas não vou me estender neste assunto, que caberia em uma outra mensagem, talvez maior que esta. É interessante ressaltar que por mais que tenhamos estudos e centros de prática de Yôga no ocidente, estaremos sempre importando as castanhas sem saber como abri-las... A filosofia da Yôga é completamente contrária ao hedonismo e apego material que caracteriza nossa civilização ocidental.

Os indianos são curiosos, e olham bastante para os ocidentais. As mulheres são mais recatadas e não encaram a ninguém (mas olham discretamente). O namoro entre eles é extremamente respeitoso e creio que só têm relações sexuais após o casamento. A geração mais nova me pereceu mais ocidentalizada, em seu modo de vestir e se comportar.

A indiana típica usa seus sáris coloridos, e as muçulmanas cobrem todo o rosto, como nos países árabes (a Índia tem mais muçulmanos que o Paquistão e o Afeganistão juntos). Entre os homens, é comum que amigos andem de mãos dadas na rua, o que a princípio nos causa uma certa surpresa. Lá, ainda hoje é perigoso tomar água ou comer em qualquer lugar. É engraçado observar os indianos comendo com a mão, e reza a lenda que deve ser sempre com a mão direita (que também é usada para cumprimentar). A mão esquerda é usada para limpar o bumbum após ir ao banheiro... Nunca estenda a mão esquerda para um indiano!As ruas são muito sujas, e os esgotos, a céu aberto. Fiquei surpreso pelo fato do Ganges ter a aparência de limpo, o que me deu a impressão de que ele é mesmo sagrado, pois com a quantidade de dejetos e lixo que são jogados, ele deveria parecer imundo. O rio é parte dos rituais sagrados de todas as cidades que atravessa.

O hinduísmo é aparentemente politeísta, mas na verdade, considera um mesmo deus em seus diferentes aspectos. As divindades Vishnu, Shiva, Shakti, Ganesha representam as manifestações da suprema consciência, que tem muitos nomes. Nas cidades sagradas podemos ver muitos ocidentais... alguns com buscas sinceras e outros apenas vestindo suas fantasias. Realmente, há algo de romântico (e de louco) em vestir uma bata, andar descalço, pintar o rosto e incorporar este arquétipo. Pena que na maioria das vezes se perde a essência do que pode ser uma excelente oportunidade de se autoconhecer. O que não faltam são gurus ávidos por discípulos, mas poucos deles podem oferecer um trabalho sério.

Bem, tive sorte de sair ileso nesse período tão conturbado, pois o conflito na região de Kashmir e os atentados terroristas estão esquentando a situação de relações com o Paquistão. A China apóia também o Paquistão, por conta das pendengas que possui com a Índia no Tibet e no Nepal. É uma pena ver que a guerra e conflitos são universais.Tem muita coisa que podemos descobrir ficando sozinhos algum tempo na vida. Mas se for na Índia, esteja preparado, porque ninguém vai a Índia em vão... :-)

Um grande abraço,
Renato